Fazer menos concessão.
já na porta de entrada sublinho o primeira lição e sua lista de definições sobre os gêneros da poesia. ela segue desdobrando o lirismo. me soa irônico que o poema ao lado, sem título e mais enxuto, fale sobre olhar o poema até vir sangue na boca. hipótese: se de primeira você aprende conceitos quase da ordem da dissecação - parece uma aula de anatomia - em seguida tem algo em outro domínio sobre o poema. perder a vista e sentir o sangue. com o livro aberto, estou na encruzilhada entre os dois. sinto que não devo procurar exatamente o bom poema, porque o bom é da ordem da classificação de um corpo morto. preciso fazer a escolha: quero sangue.
quando ela escreve Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior boboca imediatamente me reporta para anne carson em eros. pois, se livro e prazer são equivalentes porque anteriores ao texto, então livro é prazer? tomo esse livro da anacê como a ideia do que você quer dizer não apenas em uma página, mas o que você quer concatenar, o livro como discurso e menos como escritos reunidos dentro de período de tempo. desejo de dizer o que? e o momento de escrever como esse controle, esse aparar do desejo. p.81 carson diz eros corta o poeta exatamente no ponto em que se encontra essa diferença [entre o eu e não eu]. a escrita é o isolamento e enfrentar essa solidão é um caminho amoroso. e todo mundo que amou sabe a saudade que balança entre eu e você. depois que escrevo é vazio, não sou mais a mesma. é a mesma fome que eu sinto depois de comer muito a noite, de manhã tenho fome de dias. ser um bicho sem saciedade me parece tão perigoso.
o real de novo. real é a descarga elétrica dos nervos. se tem eletricidade tem real. enfim, poesia. e em vacilo da vocação tem uma comparação que não sei o quanto é comum entre pintura e poesia, e que me levou imediatamente para água viva da clarice. presenteei uma amiga muito amada por mim com meu exemplar marcado então vou lembrar só com o coração e o abstrato da pintura. a estrofe que discorre sobre a pintura inicia com precisaria trabalhar enquanto a estrofe sobre a poesia começa com a poesia não. e segue colocando pintura com afundar, saudades loucas, ininterrupta, enquanto a poesia é telegráfica, me deixa sola, à mercê do impossível. me parece de novo o movimento da solidão de eros e nossa capacidade de suportar esse momento de idas e vindas da poesia. os dias que não serão de materializar e de ficar sola.
cito anacê
Não quero agora computar as perdas. Perder é uma lenha. Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei fora algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu queria deixar. É outro. Outro agora. Acredite se puder.
No dia que notei esse trecho tinha recebido uma mensagem que dizia algo como eu quero que todo mundo tenha direito à memória e é lógico que meu caráter canceriano se indentificou. primeiro, anacê cita de muitas formas a memória como um elemento do processo de escrever. escrevo diários. muitas mulheres o fizeram. tenho paixão por ler os diários das escritoras que conheço e, acredite se puder, isso é um testemunho. isso é uma fenda. é um escape. gosto de pensar a escrita não como um momento de revelação. criar novas circunstâncias no mundo. minha escrita é um manifesto também, por muitas coisas. porque meu corpo não pede pouco.