a viagem inútil, camila sosa villada: as fêmeas

Published September 8, 2024
acho que não amadureço minha escrita
pelo medo de ser julgada por algo
tão íntimo que decidi mostrar

você tem medo de perguntar como escreve uma fêmea? se eles têm a literatura, o que escrevem as fêmeas? profundamente espero que escrevam como as minhas argentinas favoritas, mas sobretudo como camila sosa villada.
[...] que amadurecer nem sempre é melhorar. que não importa que se passem muitos anos, a escrita não é melhor ou pior, apenas muda.
que tudo isso que escrevo nada mais é que um ato de amor por mim mesma, e que às vezes sou tão estúpida que não consigo enxergar isso. não consigo ver o carinho que proporciono a mim mesma quando escrevo. um carinho desajeitado que muitas vezes se parece com um golpe, mas é assim que fêmeas transportam seus filhotes, mordendo-lhes a pele do pescoço sem causar dor

a pele do pescoço por causa da dor.

é preciso abdicar do efeito material do significado. às vezes mas nem sempre. acho bonito acreditar que uma cultura molda corpos, pois o que ouço é que se minha boca fizer um som que seja nosso o meu corpo tem escapatória. quando foi que o nosso soou como duas pessoas? voltar a escrever porque antes nós do que eles. me interessa muito falarmos de sermos cultura sem território ou nação.

então você fica nichada se a universalidade tem seus trejeitos
deus me livre escrever sobre bob dylan
embora eu possa cantar it ain't me babe
no no no it ain't me you're lookin' for


então eu gostaria de propor que na falta de evidência maior
além de estarmos muito vivas aqui (
   a despeito da maquinaria que vocês criaram
   todo sistema coercitivo de crença
   as leis que ninguém consegue decorar
   o monópolio ilegítimo da força
   a proximidade que vocês têm com toda má morte
)

que foram elas que desenharam
o primeiro beijo da humanidade
lá na serra da capivara
em são raimundo nonato no piauí
vocês tem a cataquese a literatura
o nosso interesse mesmo é a palavra,
o efeito simbólico daquilo que se inscreve,
a disposição de leitura para chegar até aqui.

ou mais ou menos isso
porque o amor é mais ou menos sobre a felicidade
que alguém te dá quando vai
porque no fundo volta sempre melhor

acho que a gente inventou a palavra ir
porque eu tenho vozes na cabeça que exigem
então não consigo aceitar outra forma de pensar
quando a hipótese vira premissa maior
vocês dizem reme reme
eu insisto
e, se nunca mais for possível escrever como desejo, então que não se escreva e pronto. ninguém morre por não escrever. não é um vício. se o desejo não esta lá, a escrita não acontece, e tentar, querer escrever o que não nasce do desejo é matar-se um pouco, e matar a literatura conosco.

tem coisa que leio e penso que é sorte
falar brasileiro assim
e penso nesse sentimento como uma traição também
porque acho curioso
a palavra estar na mão, na cabeça
e ser na boca que ela mora
tudo repete com a gente na língua

uma mulher que escreve me parece erótica da cabeça aos pés. não tem nada a ver com idade nem com forma, mas com certa intenção de erro, de falabilidade no que é feito, uma certa maneira que as mulheres têm de zombar da perfeição, que é quase um bem comum, da qual carece a maioria dos homens

e nada disso traz consenso também
tem sempre um burburinho zunindo
a última mulher que você pensa antes de dormir
é justo a que nem sabe seu nome
a gente usando a moral deles para fazer imagens nossas

para escrever é necessário abandonar os segredos e deixar a carne nos livros que escrevo ou, do contrário, se dedicar a outra coisa: mendigar, roubar. [...] não é preciso que o leitor fique com a parte mais fácil. aprendo algo sagrado: a leitura é uma das coisas mais complexas que existem. [...] como o amor, não há nada que possa nos causar mais dano e também mais felicidade.

as leituras que dão vontade de escrever é coisa nossa

a literatura não escreveu nenhuma solução para os danos da minha vida. só gravou em mim uma virtude, um sentido poético com o qual olho para as coisas.
meu pai e minha mãe são tudo o que escrevi na vida. minha escrita é a terceira parte do amor dos meus pais, que veio ao mundo de um jeito tão complicado. desde sempre, desde que a classe de uma família é determinada pelo sistema, os amores destinados a doer são fabricados à nossa medida. [...] foi sempre assim [...], ali nesse nó, é ali que está a raiz da escrita.
é apenas isto: um rastreamento da dor através das palavras. [...] sempre estaremos nos opondo, na escrita. sempre teremos um inimigo, um lado reverso. sempre haverá algo ou alguém que opõe sua natureza à nossa.
penso que o primeiro poema precisa ser um pedido de desculpa por tudo o que roubei de quem cruzou comigo. não sei se quero que me leiam como biografia ou literatura, porque essa escolha implica em acreditar que uma coisa se inventa e na outra se é. se isso tudo é mentira urge me dar a licença de catar as minhas. justapor conforme me fazem rir. tribadismo para mim é a frase longa onde a gente não sabe se respira ou aguenta mais um pouco de palavra. contra todas as crenças fazer algo entre nós gozar mais que a dor. a gente se empresta ao fogo enquanto o som exala.
como escritora, prefiro escrever as coisas decisivas do meu mundo.

eu gosto de pensar a literatura ser desde sempre o nosso pai e a nossa mãe. me salta um sorriso quando ela escreve a imposição de ser o mais fiel possível à sua mãe também é literatura. é um entendimento parecido com o gesto de alguém passar a palma da mão nas suas costas. é difícil andar pela intimidade com as pontas dos pés vestindo meia nesse chão de madeira sem escorregar.

só uma última coisa:

é melhor permanecer nesse lugar em que não se pode corrigir, nem melhorar, nem limpar, nem dividir, mas tampouco é possível apagar a frase sem sentido que precisa ser reescrita