as margens e o ditado, elena ferrante: a jaula

Published June 9, 2024

O desafio - eu pensava e penso - é
aprender usar com liberdade
a jaula na qual estamos presas.

a primeira memória do limite é um incômodo. e por limite quero dizer norma. expectativa externa. a prescrição. tudo que dá contorno à base de corte. escrever é repetir a cena primitiva em que você diz que do meu jeito não pode ser. escrever é revisitar todas as vezes que estive diante da margem e pareceu questão de escolha estar dentro ou fora. no limite ainda estou entre perecer ou perdurar. de outra forma, entre inscrever ou interditar. toda instituição tem um tanto de lacaio. nem toda escrita atravessa.

De modo mais geral, acho que a minha idéia de escrita - e também todas as dificuldades que arrasto comigo - está relacionada à satisfação de ficar plenamente dentro das margens e ao mesmo tempo, à impressão de uma perda, de um desperdício, por ter conseguido.

não poderia te dizer que se quer tenho consciência das estruturas da jaula. quiçá uma luz que faz um pincel luminoso e a dança das partículas nele. fico entretida. alguma coisa em mim sente saudade de ser feroz. gritar não libera sem arranhões. a depender da saúde demora a cicatrização. já cansei de lamber ferida. raspo de colher um sonho difícil de visualizar.

a verdadeira escrita é aquele gesto que remexe dentro do depósito da literatura em busca das palavras necessárias. […] É pura sensibilidade que se nutre de alfabeto e produz alfabeto em um fluxo irrefreável. […] de alguma escrita bem plantada na tradição, surja algo que embaralhe as cartas para que a mulher abjeta e vil que sou encontre um modo de se fazer ouvir.

é do sentimento geral do forasteiro o claustro com a palavra da terra que se chega. da estranheza dos naturais quando se usa outro som que não o criado ali. há mais piedade com os gestos dos dedos, os músculos da face tentando encontrar uma expressão comum nos olhos. é mais próximo de nascer no berço da aranha e aprender a tecer antes que te alinhem.

por menor que seja a chance de um momento de escrita passar à convulsão, o persigo. nunca desejei que fosse fácil, somente verdadeiro. como se reconhece a verdade de uma sensação é uma questão legítima.

para mim, então, a escrita tinha, essencialmente, olhos

tremer é a pior das reações involuntárias quando tento conter uma sensação. acho o que escrevo dissimulado. passo muitas vezes tendo pudores. é tola essa necessidade de querer que alguém leia, é uma vaidade que não respeito. tremo quase toda vez que escrevo parece uma boa frase de primeira. e não é o que sinto. confundir escrever com sua leitura é uma infantilidade minha. nem sempre mas muitas vezes tremo tentando dissimular.

Esto es todo: lo demás se limita a ver - aprender a ver - y hacer poemas - que también es aprender a ver.

estou querendo uma coisa muita mínima. gosto de anteriores e de mentiras que aumentam um ponto. assim como não me orgulho das que escondem. tendo a dar corda para o forque. queria todo dia responder com um nome diferente. ter uma outra história para contar. poder escrever antes do alfabeto achar o exato som. o momento que a gente experimenta mais a palavra no que ela tem de sopro é o mesmo momento de quando levamos tudo à boca. é preciso ter olhos mas é preciso ir experimentando de saliva.

vir de outro lugar é sempre estar de passagem e estrangeira. não tenho o direito de usar a palavra excessiva. não ser sempre inocente também é uma forma de se aproximar de alguma verdade.

a coincidência não se negocia em hipótese nenhuma
minha curvatura de recolha ainda que usem sua língua contra mim

No, no estás esquizofrénica; ni lo estarás, aunque te pese. Solamente tenés que quererte más e respetar tus escritos (no compararlos, inconscientemente, con los Grandes porque, Chejov dixit, “cada uno escribe como puede e como quiere”).

o cuidado inseguro de querer fazer algo bem feito sendo que você desconhece as convenções do momento. e mesmo assim como um tipo de aptidão que temos ao lado da nossa personalidade, paralelamente a ela entrar até chegar no arrecife. prosseguir ciente dos tubarões.

como é mesmo? temos toda a bruxaria de que precisamos todo dia entre nós.