escrevo como se fosse um diário porque hoje digo como quem confessa. penduro despretensiosamente algumas observações como a jaqueta que fica no encosto da cadeira da sala. qualquer caminho é escolha e imprevisto. não estar pronta diante de uma situação é um pouco estar viva por opção.
dizem que dor no pescoço pode ser dificuldade de virar a cabeça para olhar para uma verdade atrás de você. na medicina chinesa dizem que é um tipo de síndrome de obstrução dolorosa. desequilíbrio de umidade e vento. um lado me dói da cervical até debaixo da omoplata direita. é um osso grande, par e chato. eu tô perdendo o controle das pernas e andei de bicicleta até ter cãibra. atrás das amigas. algum filme. fiquei repetindo o nome das pequenas coisas como esta. qual é o meu limite é pergunta de bicho que não tem pêlo nenhum na cara. fui debaixo de chuva para segurar a vontade das minhas pernas pelas rédeas. eu estou num lugar e ela num outro um pouco mais para cima.
como se pedir fosse o segredo para não morrer, aperto bem os olhos e peço. é só deixar a mania de não confiar primeiro e pedir. então eu disse a minha vó, o meu texto é longo demais para ler assim na sua frente. ela me disse que cada poema é um sonho realizado. e sonho realizado é oferenda num mundo de hostilidade. eu só queria ficar sonhando besteira.
quando
uma coisa é poema
o poema é oferta
a palavra sem cola é uma pista
cair primeiro é segurar uma mão
ter milhas a percorrer antes de dormir é ser mais segunda-feira que domingo
o leo querendo trabalhar direito e ter alguém para dormir junto
eu querendo só o que não devo
como quem do bolo só quer comer lambendo a cobertura
dizem que dor de facão é uma queixa comum para quem corre com a respiração inadequada. desequilíbrio de umidade e vento cruzando a madrugada. o tempo é um deus não uma medida. as estrelas nos chegam mortas porque o tempo do som não é o mesmo da luz. ir por ter mais o que fazer. não posso lembrar de guardar a chuva porque sou bicho que umedece. ir molhada e misteriosa com sintomas de resfriado porque as melhores coisas não são irresistíveis, elas precisam acontecer. alguns fatos não prescindem de prova. as coincidências continuam sendo meu ponto fraco porque prefiro todo o capricho da palavra que não cola no papel do que a entrega da mensagem.
acompanhar a mudança de opinião pública sobre como as coisas deixam de ficar modernas. uma trocada pela outra sorrateiramente. fico olhando a textura da foto enquanto o que me fixa é o enquadramento. as posições esquisitas que só ficam sendo reveladas depois. e os álbuns - muito mais do que os porta-retratos - sustentavam alguma coisa da família do esquisito. com algum pacto com a verdade do visto. parado no papel por um milagre. os álbuns de fotos guardados na caixa que fica embaixo da cama. que não rasgamos entre uma mudança e outra. a foto de antes era uma piscada demorada. era como abrir o olho na luz depois de um sono escuro num lugar que você está tentando reconhecer. ainda assim é você ali com a boca seca sendo a pessoa que menos vê o seu próprio rosto. já precisa correr para um espelho. corrigir o cabelo. eu já sofro com apego de gente velha. desde sempre eu soube que abraçar minha vó seria uma memória para me confortar na sua ausência. no alto de uma subida a vó costurava fazendo assovio e esse som mesmo sendo só lembrado ainda me faz chorar. se eu conseguir ficar quieta como antes. e ficar debaixo do sol da tarde sem fugir só vendo a poeira na luz da sala. sem precisar fazer nada ouvir minha vó e o seu pé de costura. é uma memória antes de me ferir com os outros. é uma memória sobre a gente saber ter sido bicho um dia.
vocês não tem saudade da sensação de precisar correr de quando a gente era criança? o tanto que a gente precisa encostar em alguém toda hora na adolescência. um obediente razoável é aquele que no mínimo escolhe o melhor momento para desobedecer. aceita as vitórias pequenas como as batalhas a vencer na guerra que nunca vai terminar. a boca do peixe comendo o próprio rabo. é difícil ser adulto sem a coragem de antes. é difícil ser corajoso sem alguma coisa da imaturidade.
continuar a vida dos meus mortos escrevendo poemas que não parecem poemas
para continuar fazendo da palavra aquilo é herdado pela boca
que tem terra para voltar caminho para desbravar o medo
fazer o que precisa ser feito nem que seja antes do almoço de domingo
para continuar fazendo da palavra aquilo é herdado pela boca
que tem terra para voltar caminho para desbravar o medo
fazer o que precisa ser feito nem que seja antes do almoço de domingo