[…] escrevo em primeira pessoa porque quase sempre fui excluída do nós escrevo afinal porque de muitos modos aprendi a fazer parte.
ontem comprei um baralho cigano. contei sobre a nova aquisição para uma amiga o chamando de tarot e fui corrigida. não entendo quando o mundo me retifica mesmo me compreendendo. não entendo quando a convenção é mais importante que a mensagem. contudo, acato. procuro usar corretamente a palavra. acontece errar para quem escolhe aprender. escrevo para outra amiga com a palavra ensinada sobre a minha novidade banal. e como ele tem algo passível de ser chamado de feio. ainda assim clássico como eu gostaria que fosse. não sei porque ligo os fatos que ligo. e é exatamente por isso que escrevo. a aranha vive do que tece.
para tirar a primeira carta converso e interrogo com licença senhor baralho (ou baralhinho) me diz como será entre eu e você? e outras coisas na minha tímida tentativa, como todas as minhas tímidas tentativas, de não lutar contra as aberturas do meu corpo para o que não entendo. nas relações gosto do que é direto. ele sabe e me satisfaz com um símbolo direto e solene. como a lealdade quando também é consagração. tento adivinhar como quem escreve capaz de incorporar ao livro uma comunidade anônima e esquecida, in-tegrar a ele um trabalho coletivo predominantemente [sapatão] e quase arcaico em sua antiguidade. vou fazer uma bolsinha com o algodão cru. costurar com o fio da meada que comprei para poder bordar repetir no gesto do punho na pinça dos dedos a gente assalta o que nos falta. repetir o que é ancestral direto e solene quando ela sabe que alguém no futuro lembrará de nós.
para mim que não sou
dada a ser cordeiro
a teoria diz enfim que
trocar a pele
é pertencer ao futuro
estou chegando lá. porque hoje escrevo tentando confiar na minha mão como quem faz crochê e trama. depois que comprei o baralho cigano andei até o ato em memória de ana caroline sousa campêlo. no caminho parei para mijar no shopping. mãe e filha na sua feminilidade domesticada me olhavam já que não podiam me extrair. a palavra ressecção tem em sua origem etimológica a palavra corte. de carol cortaram as orelhas, olhos, a pele do rosto. cortaram carol da pessoa que dançava com ela no expediente do trabalho. de quem a acompanhava de bicicleta pela cidade. de quem com ela fiava uma vida acompanhada num mundo de tanta solidão. a cortaram das rosas vermelhas que ela ainda fungaria antes de botar em algum vaso sobre a mesa da sua casa. seu sorrisinho. arrancaram aquele sorrisinho maroto jovem que só pude ver em fotos porque cortaram de ana caroline sousa campêlo a vida. antes não a soubesse e ela ainda existisse como olha lá a sapatão que chegou algum tempo em maranhãozinho. não é que algo morre em mim. me extraíram sem assepsia e dignidade algo que tinha linhagem, pacto, tecido com carol. como não podem nos fazer compulsoriamente héteros e femininas, ora nos constrangem, ora rompem esse continuum lésbico fiado muito antes de safo. você sente isso também? no memorial organizado por carol no vão do masp, caminhoneiras negras fazem a convocação. luana barbosa. marielle franco. fiquei pensando nesse conhecimento espiritual dentro do conceito de nego bispo sobre a ancestralidade que come. o ato em roda. as velas acesas. é para pedir é para religar a trama hostilizada. carol, olhai por nós.
a teoria da ressecção reconhece
que a crueldade neste caso não
é apenas mal-estar espesso
vaguidão sonhos intranquilos
os tiros e os homens são fatais
uma cicatriz é um friso
lembrei do dia que levei minha namorada da época para comer minha esfiha favorita. aqueles lugares de portinha miúda, interior duvidoso, talvez até tenha um pano de prato no ombro do caixa-atendente-cozinheiro. compartilhar comida tem sua sacralidade. tenho meus rituais e devoções. estou de boca cheia peito aberto mãos ocupadas. ele se curva até a altura da minha orelha e diz baixo: o que você é não permitimos aqui. não tem só ódio, tem covardia no seu tom.
[…] desculpem queridas não tenho como emular a marquinha leve das poetas nesse ponto estou com as elefantas as gorilas com as cadelas vagabundas de rua vira-latas búfalas amigas durante o ano dos coágulos eu me lembrei que poesia é contenção ritmo corte duro dizer menos doer ou vibrar mais dizer menos venho aprendendo tanto a dureza há tanto tempo que poesia é menos uma história do sensível que a história de quem decepa profundamente quem decepciona mais.
o primeiro lugar que fiquei confortável com a minha aparência não feminina foi no futebol. me desculpe as exceções mas aquilo não era futebol feminino. era time de futebol lésbico. quando saí da estreiteza do meu bairro para frequentar o colégio do centro, e entrei no vestiário cheio delas pela primeira vez, era como achar a última pessoa que faltava no esconde-esconde. então era ali que vocês se escondiam. era dali que eu tinha vindo. foi como chegar em casa após longo período de exílio. o alívio de não ser mais a única.
por isso nunca neguei
a contralto suburbana
de heranças atípicas
vivo do contrabando
dou aula de indignação
curso geral de alforrias
minha mãe me agrediu física e psicologicamente para lidar com seu ódio à minha lesbiandade. ela poderia ter até amigas que são, mas não a filha dela. foram oito anos, entre ela violar minha privacidade e “me descobrir” e passar a aceitar dentro da casa dela minha namorada. foram mais doze anos até eu entender que esse gesto não tem amor nenhum.
cicatrizada assim pretendo voltar à vida
esses dias ouvi uma senhora dizer que não escrevia nada autobiográfico, não achava a vida dela tão interessante assim. ri por dentro pela crença nesse ego separado de qualquer coisa que essa senhora se meta a escrever. a ignorância sobre silenciamentos brutais contra os quais a autoficção se opõe. depois tive raiva. ranço. supero amores. ranço? ranço não. queria escrever um longo email para carol. queria voltar a jogar futebol. chamar minha amiga para bordar o poema do moisés. te chamar para almoçar comigo, sozinha as coisas andam tão indispostas à digestão.
escrever para remendar
a infância a loucura
escrever para estranhar
o pai a mãe semelhanças
escrever para cerzir
terra corpo paisagem
escrever a carne viva.
na dedicatória do meu exemplar de teoria da ressecção tatiana deseja que eu encontre algo meu no seu livro. queria poder dizer a ela: achei muitas coisas nossas.